Entre hospitalidade e hostilidade

Padre Alfredo Gonçalves, missionário Scalabriniano e vice-presidente do Servicio Pastoral de los Migrantes no Brasil (SPM), fala sobre o livro “Stranieri residenti”, de Donatella Di Cesare

De acordo com a filósofa italiana Donatella Di Cesare, “a hospitalidade mostra sua perturbadora conexão com a hostilidade” (Cfr. Estrangeiros residentes, uma filosofia da migração, tradução de Cézar Tridapalli, Ed, Âyiné, Belo Horizonte, Veneza, 2020, pag. 32). Duas faces da mesma moeda. Quando há expansão socioeconômica e necessidade de mão-de-obra, os imigrantes costumam ser bem-vindos. (…) Ao contrário, numa eventual “crise humanitária”, quando as taxas de desemprego e subemprego se elevam, então os migrantes são em geral rechaçados.

Duplamente rechaçados: na origem, pela privação ou pela violência; no destino, pela crescente discriminação. Quando muito se lhes abre a porta dos fundos, para os serviços mais sujos e pesados, perigosos e mal remunerados.

Resíduos da terra

Semelhante recusa em acolher “estrangeiro” tem se agravado com a ascensão da extrema direita ao poder em várias partes do planeta, revestida sempre de um nacionalismo populista. Daí as frases bombásticas, tais como “América para os americanos”; “Europa para os europeus”; ou “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. No caso brasileiro, o nacionalismo dá as mãos à instrumentalização do sagrado. Todo fanatismo – político, ideológico ou religioso – produz montanhas de cadáveres. A hospitalidade acolhedora cede o lugar à hostilidade.

Ambos os termos oscilam nos diferentes modos de considerar mobilidade humana. Quando o sol brilha, a imagem da liberdade abre o sorriso e os braços. Mas quando o céu escurece e a tempestade se avizinha, a estátua vira as costas a quem bate à porta, interessada apenas nos “cidadãos com raízes na terra”. Ainda de acordo com a autora, o migrante na maioria das vezes entra em rota de colisão com o tipo de estado-nação ocidental. Este último, de fato, ao mesmo tempo que se fundamenta nos direitos universais de cada ser humano, incluindo o direito de ir e vir, limita sua extensão aos nascidos no território. O sangue, o berço, o solo e a herança social, política e histórica determinam o monopólio absoluto sobre o espaço geográfico.

A crítica de Donatella a esse sistema estadocêntrico torna-se contundente: “Desde quando os Estados-nações repartiram o planeta, foi se produzindo, entre um limite e outro um “refugo da terra”, que pode ser impunemente pisoteado e que, apesar disso, não para de vir à tona e crescer. O refugo é o que sobra da terra dividida, são os sem-pátria, os sem-cidade, os refugiados, presos entre as fronteiras nacionais, que aparecem coo sujeitos incômodos, corpos estranhos, seres indesejáveis

Desmascarando o Estado

Em tal perspectiva, o migrante desmascara o Estado. Da margem externa, interroga o seu fundamento, aponta o dedo contra a discriminação, relembra o estado de sua constituição histórica, descrê de sua pureza mítica. E por isso obriga-o a repensar-se. Nesse sentido, a migração traz consigo uma carga subversiva.

Tende a questionar os limites arbitrariamente desenhados, ao mesmo tempo que supera o território pátrio desta ou daquela nação. Seu sonho é ultrapassar as fronteiras – com o objetivo de encontrar alhures o que lhe nega a terra natal.